No coração, um Shakta, na aparência, um Shaiva, nas congregações, um Vaishnava. Sob todas as aparências os Kaulas perambulam pelo mundo.
A tradição Kaula, segundo um manuscrito do Séc. XI d.C., intitulado Kaulajñánanirnaya, foi iniciada pelo sábio Matsyendranáth. Entretanto, esse mestre foi somente o fundador da escola Yoginí Kaula de Kámárúpa – antigo reino do norte da Índia, próximo ao atual Assam e Nepal –, uma das quatorze escolas ou linhas desta tradição.
A tradição Yoginí Kaula postula como sádhana o ‘estado natural’ (sahaja) de ser, no qual a mente permanece estável, entra na vacuidade (shunyá) e se liberta da dualidade (dvaita). Esta tradição não enfatiza a prática dos antigos ritos externos, como rituais de purificação, estudo das escrituras, práticas exotéricas, sacrifícios, banhos ritualísticos e abluções, assim como visitas periódicas a lugares sagrados, pois afirma que estas observâncias não têm valor como meios para se atingir o objetivo supremo de autoconhecimento e iluminação. Os Kaulas pregam a substituição dos ritos externos por uma senda de esforço pessoal (sádhana), acompanhada pelo desenvolvimento das potencialidades alquímicas interiores.
Geograficamente, a tradição Kaula nasceu em Kámárúpa, antigo nome dado ao norte da Índia onde se encontram os Estados da Caxemira, Nepal e Assam, espalhando-se posteriormente para o sul do continente, principalmente para cidade de Kanyákumárí, sul do Estado Tamil e em seguida para toda a Índia.
A palavra kaula como um substantivo comum significa pertencente ou relacionado com uma família, grupo ou etnia. Neste aspecto, o termo kaula tem o mesmo significado que kula, sendo ambas às palavras utilizadas como sinônimos algumas vezes, embora o termo kula também seja mais uma designação genérica de cobertura para um grande número de escolas de linhagem shakta do que a designação de uma tradição em si. Em outras palavras, o nome significa em primeiro lugar grande família, casta nobre ou clã, e por extensão, organização ou cadeia iniciática, implicando a presença real da shakti.
Ritualisticamente, os Kaulas colocam ênfase sobre um culto vámácára (ou kaularahasya) voltado a Shakti Deví sob várias designações, embora todos estes nomes sejam designações populares da Grande Kula, o poder feminino do Cosmos, a Realidade Suprema em seu aspecto dinâmico, Shakti, ou mais especificamente, kundaliní-shakti. O aspecto masculino, Shiva, nesta tradição recebe o nome de Akula, princípio que transcende qualquer diferenciação. Assim, Kaula é um estado de iluminação ou libertação obtido através da união entre Shiva & Shakti.
O método de realização Kaula contém três aspectos importantes: o primeiro relaciona-se à vivencia da experiência corpórea sem ascetismo, mas orientada com esforço para despertar o poder da consciência (cit-shakti); o segundo relacionado à arte e à perfeição na prática dos fonemas (bijámantras) que provocam estados alterados de consciência; e o terceiro direcionado a prática ritualística em grupo.
O objetivo da prática Kaula é levar o discípulo a vivenciar a experiência da consciência liberta, o verdadeiro Ser (shaktátmá) presente no coração de todos os seres vivos. Esse objetivo pede um método ou processo de iluminação que é o sádhana Kaula, pelo qual o praticante (sádhaka) ou a praticante (sádhiká) deve possuir a maestria das forças sutis da mente instintiva e condicionada (manas) para atingir a Luz Suprema (prakásha). Para este fim, os Kaulas não injuriam ou abandonam sua natureza humana, tampouco seu corpo material. Eles consideram o corpo e sua natureza como uma dádiva do Ser Supremo, e como tal os glorificam com devoção pelo ritual.
As raízes da tradição Kaula estiveram perdidas até o Séc. XI d.C., quando Abhinavgupta fora iniciado nesta tradição por seu mestre Shambhunáth, mais precisamente na Escola Ardhatryambaka – também conhecida como Kulaprakriyá, uma Escola Kaula provinda da linhagem da filha de Tryambaka. A iniciação de Abhinavgupta nesta linha da tradição Kaula se deu através da esposa de seu guru, Shambhunáth, que atuou como uma dútí ou iniciadora. Esta iniciação é transmitida por um tipo especial de atividade sexual onde toda a energia é transmutada e sublimada no coração e posteriormente na consciência em si. Este é um método difícil de iniciação, mas rápido e eficiente, e está reservado aqueles que já dominaram sua natureza instintiva e são considerados puros de coração. Entretanto, segundo ele mesmo afirmou, o primeiro mestre da tradição Kaula foi Sumati, que teria vivido no sul da Índia, provavelmente na região Tamil. Assim, Sumati deu origem a linha preceptória iniciando Somadeva, que por sua vez fora mestre de Shambhunáth, quem iniciou Abhinavgupta em Jalandhara, no Punjab. Estas últimas informações aparecem com alguma imprecisão, principalmente acerca das fundações da tradição Kaula. No artigo, Em Busca das Raízes Tântricas do Hatha Yoga, primeira parte, outras informações importantes são mencionadas, e ao leitor é indicado sua leitura como forma complementar. Alguns textos dizem que Shambhunáth iniciou Abhinavgupta na Caxemira, o que seria mais provável. Outros dizem que esta iniciação ocorreu em Assam.
Como um dos maiores mestres da tradição Kaula em seu tempo, Abhinavgupta desenvolveu uma nova forma de tantrismo na região da Caxemira, incorporando a tradição Kaula os ensinos de Shivagupta (Shiva-Sútras) e da tradição Krama.
Abhinavgupta estabeleceu uma distinção entre os seguidores do Kula e do Kaula, dizendo que os primeiros são formados por clãs de ascetas próximos aos Kápálikas, e tal como estes vivem ao largo da sociedade como mendicantes, habitando os locais de cremação. Os Kaulas são uma tradição “organizada” e acessível aos “chefes de família” ou às pessoas que vivem na sociedade. A reforma que Abhinavgupta promoveu na tradição ao urbanizar o Kula, tornou o Kaula aberto ao culto das yoginís, assim os kaulikas passaram a enfatizar o aspecto mais interior do ritual, o que possibilitou que eles vivenciassem as mesmas experiências dos Kápálikas no interior de suas casas de forma urbana e organizada. Desta maneira, os rituais das yoginís e dos Kápálikas foram transformados em um culto doméstico, e ritos externos como aqueles efetuados em crematórios foram abandonados como supérfluos.
Assim como os ‘Perfeitos’ (siddhas), os ‘Heróis’ (víra), os Kaulas, membros de um círculo muito fechado, devem dominar perfeitamente os seus sentidos, o seu pensamento, superar suas dúvidas e medos, ter um coração puro, livre da cobiça e do apego, e ter recebido de um Guru Real, de linhagem fidedigna, a iniciação.
Somente nestas condições os Kaulas podem vivenciar, protegidos por um marco ritual, as experiências proibidas ou desaconselhadas aos homens ordinários (pashu) dominados pela rotina e pela cobiça, Os Kaulas chegam a libertação – “transformando o veneno em remédio” – utilizando meios que são, para maioria, causa de degradação ou dependência. Assim, trata-se de um autentico Yoga, muito diferente do Yoga Clássico, e segundo seus adeptos, mais completo, pois realiza a união dos opostos, espiritualizando o corpo e corporificando o espírito.
“É dito que o yogí não pode gozar do mundo e que aquele que goza do mundonão pode conhecer o Yoga: mas na via dos Kaulas há ao mesmo tempo gozo (bhoga) e Yoga” – Kulárnava Tantra I:23.
No momento em que um Kaula efetua a união sexual ele se abstrai do prazer simplesmente carnal e é absorvido na felicidade pura (ánanda) que é a natureza essencial do Ser. A lúcida utilização do álcool, a ingestão de comidas excitantes e a participação da mulher iniciada não tem outro objetivo que o de revelar e amplificar esta vibrante felicidade. Para que estas práticas possam surtir efeitos consideráveis, devem ser acompanhadas com a ascensão da Kundaliní. Em outras palavras, aquilo que os yogis realizam sem a ajuda de uma mulher exterior por um processo puramente endógeno.
Nos rituais Kaulas a energia Kundaliní está encarnada na companheira feminina transubstanciada em Deusa. O homem, representante do pólo Consciência, se identifica com Shiva.
Nos ritos Kaulas há um alto grau de interiorização, de preparação e de capacidade metafísica. O rito exige de ambas as partes intensa concentração para que não se degenere em uma paródia iniciática. O ego deve ser completamente abolido. Se a sacerdotisa que encarna a Deusa deixa de ser observada como uma incorporação sublime e passa e ser vista como apenas um objeto, desgraçadamente o rito se degenera. O resultado é o que vemos por aí: clubinhos pseudo-tântricos que se propagam no ocidente e outros, como os neo-tântricos, que se pretendem passar por tântricos espiritualizados que são nada menos, na melhor das hipóteses, uma terapia de duvidoso resultado. Um hedonismo puro e simples que prende o buscador a forma ao invés de impulsioná-lo a sua Real Essência.
Outras importantes tradições tântricas que estiveram conectadas de alguma forma a tradição Kaula são às tradições Nátha, Krama e Trika.
A tradição Kaula, segundo um manuscrito do Séc. XI d.C., intitulado Kaulajñánanirnaya, foi iniciada pelo sábio Matsyendranáth. Entretanto, esse mestre foi somente o fundador da escola Yoginí Kaula de Kámárúpa – antigo reino do norte da Índia, próximo ao atual Assam e Nepal –, uma das quatorze escolas ou linhas desta tradição.
A tradição Yoginí Kaula postula como sádhana o ‘estado natural’ (sahaja) de ser, no qual a mente permanece estável, entra na vacuidade (shunyá) e se liberta da dualidade (dvaita). Esta tradição não enfatiza a prática dos antigos ritos externos, como rituais de purificação, estudo das escrituras, práticas exotéricas, sacrifícios, banhos ritualísticos e abluções, assim como visitas periódicas a lugares sagrados, pois afirma que estas observâncias não têm valor como meios para se atingir o objetivo supremo de autoconhecimento e iluminação. Os Kaulas pregam a substituição dos ritos externos por uma senda de esforço pessoal (sádhana), acompanhada pelo desenvolvimento das potencialidades alquímicas interiores.
Geograficamente, a tradição Kaula nasceu em Kámárúpa, antigo nome dado ao norte da Índia onde se encontram os Estados da Caxemira, Nepal e Assam, espalhando-se posteriormente para o sul do continente, principalmente para cidade de Kanyákumárí, sul do Estado Tamil e em seguida para toda a Índia.
A palavra kaula como um substantivo comum significa pertencente ou relacionado com uma família, grupo ou etnia. Neste aspecto, o termo kaula tem o mesmo significado que kula, sendo ambas às palavras utilizadas como sinônimos algumas vezes, embora o termo kula também seja mais uma designação genérica de cobertura para um grande número de escolas de linhagem shakta do que a designação de uma tradição em si. Em outras palavras, o nome significa em primeiro lugar grande família, casta nobre ou clã, e por extensão, organização ou cadeia iniciática, implicando a presença real da shakti.
Ritualisticamente, os Kaulas colocam ênfase sobre um culto vámácára (ou kaularahasya) voltado a Shakti Deví sob várias designações, embora todos estes nomes sejam designações populares da Grande Kula, o poder feminino do Cosmos, a Realidade Suprema em seu aspecto dinâmico, Shakti, ou mais especificamente, kundaliní-shakti. O aspecto masculino, Shiva, nesta tradição recebe o nome de Akula, princípio que transcende qualquer diferenciação. Assim, Kaula é um estado de iluminação ou libertação obtido através da união entre Shiva & Shakti.
O método de realização Kaula contém três aspectos importantes: o primeiro relaciona-se à vivencia da experiência corpórea sem ascetismo, mas orientada com esforço para despertar o poder da consciência (cit-shakti); o segundo relacionado à arte e à perfeição na prática dos fonemas (bijámantras) que provocam estados alterados de consciência; e o terceiro direcionado a prática ritualística em grupo.
O objetivo da prática Kaula é levar o discípulo a vivenciar a experiência da consciência liberta, o verdadeiro Ser (shaktátmá) presente no coração de todos os seres vivos. Esse objetivo pede um método ou processo de iluminação que é o sádhana Kaula, pelo qual o praticante (sádhaka) ou a praticante (sádhiká) deve possuir a maestria das forças sutis da mente instintiva e condicionada (manas) para atingir a Luz Suprema (prakásha). Para este fim, os Kaulas não injuriam ou abandonam sua natureza humana, tampouco seu corpo material. Eles consideram o corpo e sua natureza como uma dádiva do Ser Supremo, e como tal os glorificam com devoção pelo ritual.
As raízes da tradição Kaula estiveram perdidas até o Séc. XI d.C., quando Abhinavgupta fora iniciado nesta tradição por seu mestre Shambhunáth, mais precisamente na Escola Ardhatryambaka – também conhecida como Kulaprakriyá, uma Escola Kaula provinda da linhagem da filha de Tryambaka. A iniciação de Abhinavgupta nesta linha da tradição Kaula se deu através da esposa de seu guru, Shambhunáth, que atuou como uma dútí ou iniciadora. Esta iniciação é transmitida por um tipo especial de atividade sexual onde toda a energia é transmutada e sublimada no coração e posteriormente na consciência em si. Este é um método difícil de iniciação, mas rápido e eficiente, e está reservado aqueles que já dominaram sua natureza instintiva e são considerados puros de coração. Entretanto, segundo ele mesmo afirmou, o primeiro mestre da tradição Kaula foi Sumati, que teria vivido no sul da Índia, provavelmente na região Tamil. Assim, Sumati deu origem a linha preceptória iniciando Somadeva, que por sua vez fora mestre de Shambhunáth, quem iniciou Abhinavgupta em Jalandhara, no Punjab. Estas últimas informações aparecem com alguma imprecisão, principalmente acerca das fundações da tradição Kaula. No artigo, Em Busca das Raízes Tântricas do Hatha Yoga, primeira parte, outras informações importantes são mencionadas, e ao leitor é indicado sua leitura como forma complementar. Alguns textos dizem que Shambhunáth iniciou Abhinavgupta na Caxemira, o que seria mais provável. Outros dizem que esta iniciação ocorreu em Assam.
Como um dos maiores mestres da tradição Kaula em seu tempo, Abhinavgupta desenvolveu uma nova forma de tantrismo na região da Caxemira, incorporando a tradição Kaula os ensinos de Shivagupta (Shiva-Sútras) e da tradição Krama.
Abhinavgupta estabeleceu uma distinção entre os seguidores do Kula e do Kaula, dizendo que os primeiros são formados por clãs de ascetas próximos aos Kápálikas, e tal como estes vivem ao largo da sociedade como mendicantes, habitando os locais de cremação. Os Kaulas são uma tradição “organizada” e acessível aos “chefes de família” ou às pessoas que vivem na sociedade. A reforma que Abhinavgupta promoveu na tradição ao urbanizar o Kula, tornou o Kaula aberto ao culto das yoginís, assim os kaulikas passaram a enfatizar o aspecto mais interior do ritual, o que possibilitou que eles vivenciassem as mesmas experiências dos Kápálikas no interior de suas casas de forma urbana e organizada. Desta maneira, os rituais das yoginís e dos Kápálikas foram transformados em um culto doméstico, e ritos externos como aqueles efetuados em crematórios foram abandonados como supérfluos.
Assim como os ‘Perfeitos’ (siddhas), os ‘Heróis’ (víra), os Kaulas, membros de um círculo muito fechado, devem dominar perfeitamente os seus sentidos, o seu pensamento, superar suas dúvidas e medos, ter um coração puro, livre da cobiça e do apego, e ter recebido de um Guru Real, de linhagem fidedigna, a iniciação.
Somente nestas condições os Kaulas podem vivenciar, protegidos por um marco ritual, as experiências proibidas ou desaconselhadas aos homens ordinários (pashu) dominados pela rotina e pela cobiça, Os Kaulas chegam a libertação – “transformando o veneno em remédio” – utilizando meios que são, para maioria, causa de degradação ou dependência. Assim, trata-se de um autentico Yoga, muito diferente do Yoga Clássico, e segundo seus adeptos, mais completo, pois realiza a união dos opostos, espiritualizando o corpo e corporificando o espírito.
“É dito que o yogí não pode gozar do mundo e que aquele que goza do mundonão pode conhecer o Yoga: mas na via dos Kaulas há ao mesmo tempo gozo (bhoga) e Yoga” – Kulárnava Tantra I:23.
No momento em que um Kaula efetua a união sexual ele se abstrai do prazer simplesmente carnal e é absorvido na felicidade pura (ánanda) que é a natureza essencial do Ser. A lúcida utilização do álcool, a ingestão de comidas excitantes e a participação da mulher iniciada não tem outro objetivo que o de revelar e amplificar esta vibrante felicidade. Para que estas práticas possam surtir efeitos consideráveis, devem ser acompanhadas com a ascensão da Kundaliní. Em outras palavras, aquilo que os yogis realizam sem a ajuda de uma mulher exterior por um processo puramente endógeno.
Nos rituais Kaulas a energia Kundaliní está encarnada na companheira feminina transubstanciada em Deusa. O homem, representante do pólo Consciência, se identifica com Shiva.
Nos ritos Kaulas há um alto grau de interiorização, de preparação e de capacidade metafísica. O rito exige de ambas as partes intensa concentração para que não se degenere em uma paródia iniciática. O ego deve ser completamente abolido. Se a sacerdotisa que encarna a Deusa deixa de ser observada como uma incorporação sublime e passa e ser vista como apenas um objeto, desgraçadamente o rito se degenera. O resultado é o que vemos por aí: clubinhos pseudo-tântricos que se propagam no ocidente e outros, como os neo-tântricos, que se pretendem passar por tântricos espiritualizados que são nada menos, na melhor das hipóteses, uma terapia de duvidoso resultado. Um hedonismo puro e simples que prende o buscador a forma ao invés de impulsioná-lo a sua Real Essência.
Outras importantes tradições tântricas que estiveram conectadas de alguma forma a tradição Kaula são às tradições Nátha, Krama e Trika.
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