Abhinavagupta, Paramarthasára, versículo 1
Não existe nada que não seja Shiva, dizem as escrituras do Shaivismo da Caxemira. Esta é uma filosofia não-dualista
[1] cujo fundamento central é que toda Criação é uma Vibrante (spanda) Energia Consciente que se expressa em diferentes formas e nomes. O termo Shaivismo é derivado de Shiva, [2] a Realidade Última (Anuttara), a Consciência Suprema que revela-se em inúmeras formas e nomes, na medida em que é simultaneamente transcendente e imanente.[3]O Shaivismo da Caxemira iniciou-se por volta do Séc. IX d.C. com Vasuguptáchárya. Em sonho, ele fora instruído pelo próprio Shiva a encontrar uma série de ensinamentos grafados em uma rocha chamada shamkaropala na montanha Mahádeva. Ao acordar, Vasuguptáchárya foi até a montanha e ao tocar na pedra estes ensinamentos se revelaram. A pedra ainda se encontra na montanha, mas as inscrições não são mais visíveis aos olhos humanos, pois quando Vasugupta as memorizou elas desapareceram. Neste sonho Shiva disse-lhe que o mundo havia perdido sua direção e necessitava de uma doutrina que pudesse colocar todos os seres no caminho do verdadeiro ensinamento.[4] Estes ensinamentos posteriormente ficaram conhecidos como Shiva-Sútras, um compendio de 77 sútras[5] que dão instruções diretas a humanidade e são o coração – ou a semente – da filosofia e disciplina do Shaivismo da Caxemira.[6]
Kshemarájáchárya (975 a 1125 d.C.), discípulo direto de Abhinavagupta,[7] em seu comentário do Shiva-Sútras atesta o nascimento do Shaivismo da Caxemira como uma revelação em sonho conforme exposto acima. Ele translitera:[8] Na montanha Mahádeva estão às doutrinas secretas inscritas em uma pedra. Recolhe deste lugar estas escrituras e ensine àqueles que merecem esta graça.[9]
Em termos religiosos e filosóficos, a grande importância destes Aforismos de Shiva consiste no fato de que eles foram revelados para contestar os efeitos do dualismo. Portanto o Shiva-Sútras é genericamente chamado de Shivopanisat-Sangraha, i.e. um compendio que contém a doutrina secreta revelada por Shiva. Esta escritura (ágama)[10] é a pedra filosofal do Shaivismo da Caxemira.
O sistema shaiva de filosofia advaita (i.e. não-dual) e Yoga é genericamente conhecido como shaivágama.[11] A palavra ágama significa sistema ou doutrina tradicional que demanda fé. Este sistema também é conhecido como Shiva-Shásana. Outros nomes comuns para o sistema shaiva não-dualista da Caxemira são Trika-Shásana, Trika-Shástra, Trika-Sampradáya, Tryambhaka-Sampradáya,[12] Svátantryaváda, Svátantrya ou Rahasya Sampradáya.[13]
Existe uma grande dificuldade quando utilizamos o termo “Shaivismo da Caxemira” pois ele agrega em seu escopo inúmeros grupos, tradições e movimentos. Portanto, neste artigo este termo está conectado ao sistema não-dual de filosofia shaiva, cujas principais escolas são: Spanda, Kaula, Krama e Pratyabhijñá.
Comumente entre os estudiosos o termo Trika-Shástra tornou-se um sinônimo indelével de designação para o sistema shaiva da Caxemira. Trika[14] literalmente significa tríade, e fora cunhado em relação à síntese exposta por Abhinavagupta. O termo incorpora importantes significados shaivas de acordo com algumas escolas:
1. Shiva (o Ser), Shakti (a Energia) e Nara (o indivíduo limitado);
2. Pará (não-dualidade), Apará (dualidade) e Parápará (a unidade na dualidade);
3. Pati (o Senhor Supremo), Pashu (o indivíduo limitado) e Pásha (o encarceramento, a prisão).
4. As três principais características de Shiva: icchá (vontade), jñána (conhecimento) e kriyá (realização);
5. A tríplice experimentação psicológica, i.e. o sujeito (conhecedor), o conhecimento e o objeto (conhecido).
6. Os três caminhos que levam o ser humano em direção ao Absoluto (Shiva): Shambhavopáya (a via divina), Shaktopáya (a via da energia) e Ánavopáya (a via do indivíduo);
7. Abheda (não-dualidade), Bhedabheda (não-dualidade com dualidade) e Bheda (dualidade);
8. Shiva (o Ser), Shakti (a Energia) e Anu (o indivíduo limitado).
Eu penso que o mais importante significado da palavra Trika para os yogís é a tríade Shiva-jíva-sádhana que pode ser chamada de tríade Consciência-aprisionamento-yoga. O termo assim designa três pontos a serem explorados: 1. a natureza da Consciência (i.e. o Absoluto) e a criação do universo dentro da Consciência; 2. o aprisionamento, a contração da Consciência e a experiência limitada e sofredora e; 3. o sádhana, a prática espiritual que livra o adepto da condição de aprisionamento. Portanto, Trika-Shástra coloca ênfase no sádhana, o aspecto prático ou yogí do Shaivismo da Caxemira.
Esta última definição, assim acredito, é designada para aqueles que estão firmemente estabelecidos em sua prática espiritual. Para aqueles que se interessam pelo Shaivismo da Caxemira e seguem sua disciplina yogí. Este é o coração do shaivismo (Trika Hridayan).
O shaivismo ensina que o estofo básico do universo é consciência pura, e não matéria. Isso pode ser comparado à experiência onírica no qual a consciência do sonhador é o substrato fundamental de tudo o que se apresenta no sonho. A Consciência que subjaz o universo pode ser chamada de Deus. Aqui me refiro a Deus como o Absoluto, além de qualquer forma específica.
Por razões apenas conhecidas a Ele, Deus decide criar o universo e se transforma em muitos. Pelo Seu Poder, que é personificado como Seu aspecto feminino, Ele cria o universo em seu próprio Ser, Ele mesmo se torna uma alma individual pelo processo de contração. Embora ele apareça na Consciência, o mundo criado é real. O universo é na verdade a Consciência que vibra em diferentes freqüências, se transformando mais material e grosseiro na medida em que se densifica.
O ser humano não é nada além de Deus na forma contraída. Quando um indivíduo olha para dentro de si mesmo ele consegue perceber que possui as mesmas qualidades do Absoluto, embora esteja contraído e viciado. Deus possui perfeita vontade (icchá), perfeito conhecimento (jñána) e perfeita habilidade para fazer (kriyá). O ser humano possui estes mesmos poderes em condições limitadas. Eles se apresentam como três nós dentro de seu ser.
O primeiro nó é a limitação da vontade. É a experiência humana individual que, no coração de cada um, aparece como um doloroso senso de separação, fraqueza e miséria. Este é o principal trauma de nascimento quando Deus se torna o indivíduo. A limitação do conhecimento é experienciada na mente. A mente humana experiencia a confusão e perdição na escuridão, portanto não consegue acessar a verdade. O terceiro nó é experienciado na região do umbigo e é sentida como um sentimento de frustração e falta de realização.
O shaivismo nos pede que reconheçamos nossa similaridade com Deus e afinal nossa unidade com Ele. Esta tradição examina a condição humana minuciosamente como uma contração que nos move da condição divina para condição de seres humanos. Ela reconhece o poder de contração e embotamento que possibilita esta condição. O poder é real, mas ele é na verdade um aspecto de Deus. Uma das maneiras pelas quais Ele pode nos mostrar isso é através de sua linguagem. A linguagem que Deus utiliza em Seu verdadeiro estado – como Absoluto – expressa sua estática canção de unicidade, ao contrário da linguagem humana, que tende perpetuar a separação e a fraqueza.
Observando a situação humana, o shaivismo entrega a solução, uma metodologia de superação das fraquezas e limitações humanas. Ele propõe uma compreensiva tecnologia interna designada a resgatar no ser humano sua inerente unicidade com Deus. Para isso, ele dissipa no praticante os nós de seu coração, de sua mente e de sua região umbilical por três métodos que serão abordados no decorrer do texto.
Tendo praticado profundamente estes métodos espirituais, o shaivita (shivaístaou shaiva, praticante do shaivismo) reconhece que a divindade de seu Ser é a mesma Consciência que perpassa o mundo e todos os seres. Não existe mais a distinção entre o divino e o impuro, o espírito ou a matéria. Ele experiencia a liberdade total, brilhando com sabedoria divina, e radiante com amor universal.
Anuttara Kápilanáth Kuláchárya
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[1] Idealismo monístico, idealismo absoluto, monismo teístico, idealismo realista, fisicalismo transcendental ou monismo concreto. Estas descrições dão significado ao ponto de vista de que cit (consciência) é uma realidade única; que a matéria não está separada de consciência, mas sim idêntica a ela; que não existe um abismo entre Deus e o mundo; o mundo não é uma ilusão conforme preconizado pelo Advaita Vedánta. Em outras palavras, ilusão é a percepção imediata da dualidade.
[2] Quando nos referimos ao termo Shiva estamos considerando seu sinônimo, i.e. Consciência Universal, Consciência Cósmica, Realidade Última, uma forma impessoal de Shiva. A mitologia das escrituras hindus como os puránas e diversas lendas populares trazem um considerável compendio de informações para que todo buscador encontre uma forma de Shiva pessoal, coberto de cinzas, envolto por rudrakshamálás, circundado por serpentes, com o Ganges escorrendo de sua cabeça. Essa é uma imagem pictórica de Shiva: o yogí boêmio exaltado em poder e glória transcendental. Nos pújás devocionais os mestres shaivas visualizam esta forma pessoal de Shiva. Aqui nos referimos à forma impessoal.
[3] Esta Realidade Última no Advaita Vedánta de Shrí Shankaráchárya é conhecida como Brahman.
[4] The Yoga of Kashmir Shaivism (Swami Shankaránanda), pp. 44. Motilal Banarsidass, 2006.
[5] Literalmente, fio, cordão, aforismo. Prosa concisa e enigmática na qual aparece redigida uma grande parte dos textos filosóficos do hinduísmo. Um sútra é uma composição de afirmações aforísticas que, unidas, dão ao leitor um sentido como que de um fio ou cordão com que amarrar todas as idéias importantes que caracterizam o sistema.
[6] Os outros manuscritos e escrituras deste sistema são comentários do Shiva-Sútras ou expansões dele.
[7] Veja o artigo Em Busca das Raízes Tântricas do Hatha Yoga.
[8] Existem controvérsias no que concerne à revelação do Shiva-Sútras. 1. Kallata em seu Spanda-Vrtti diz que Shiva ensinou o Shiva-Sútras em sonho a Vasugupta, que vivia na montanha Mahádeva no vale do arroio de Harvan, atrás do horto salimar perto de Shringar; 2. Bháskara em seu Várttika diz que um siddha ensinou o Shiva-Sútras em sonho a Vasugupta. O ponto comum dentre essas três teorias, i.e. a de Kshemarája, Kallata e Bháskara é: o Shiva-Sútras não é criação da mente humana. Eles tiveram sua origem no próprio Shiva e foram transmitidos – ou revelados – em sonho a Vasugupta. Estas controvérsias a respeito da suposta revelação do Shiva-Sútras são enfaticamente discutidas pelos escolásticos da tradição shaiva, contudo, qualquer um que se aprofunde e adquira intimidade com estes aforismos notará que eles provêm de uma fonte elevada. Grandes pândidas, mestres e sábios como Vasuguptáchárya tiveram acesso a essa fonte.
[9] Shiva-Sútras, The Yoga of Supreme Identity (Jaideva Singh), pp. xvi. Motilal Banarsidass, 2006. Esta é uma reimpressão da edição de 1979 da tradução em inglês do Shiva-Sútras Vimarshiní de Kshemarája.
[10] Obras consideradas como a revelação da divindade.
[11] Escrituras shaivas. O termo Shaivágama Yoga denomina o Yoga do Shaivismo da Caxemira ou Shaivismo Trika da Caxemira conforme os códices do Shiva-Sútras.
[12] No último capítulo de seu Tantráloka, Abhinavagupta menciona que dois preceptores estavam qualificados a ensinar o shaivismo: Lakulísha e Shríkantha. O primeiro fora o fundador dos Páshupatas, o segundo deu instruções a três seres perfeitos: Tryambhaka, Ámardaka e Shrínátha. Respectivamente, estes seres perfeitos ensinaram a doutrina shaiva da não-dualidade, dualidade, e não-dualidade com dualidade. A filha de Tryambhaka fundou uma quarta escola identificada como Ardhatryambhaka, que pode ser designada como a Tradição Kaula, chamada de kula-prakriyá por Jayaratha. Enquanto a Tradição Kaula é designada como sendo essencialmente tântrica, Jayaratha, um dos grandes comentadores do Tantráloka que viveu no Séc. XII d.C., sugere uma distinção entre kula-prakriyá e tantra-prakriyá: a primeira está conectada a linha Ardhatryambhaka e a segunda aos ensinamentos não-duais de Tryambhaka.
[13] As palavras shásana e shástra são muito importantes: ambas contêm a raíz shása que significa disciplina. Assim, shásana ou shástra significa técnicas que contém regras para disciplina. Estas palavras na Índia não são disciplinas consideradas como mera exposição intelectual de um sistema em particular. Elas expõem os princípios fundamentais da realidade ao mesmo tempo que lidam com certas regras, certas normas de conduta que devem ser observadas pelos adeptos que estudam e seguem determinadas tradições. Um shástra é um modus operandi, uma filosofia de vida.
[14] “Na Caxemira, o shaivismo se manifestou primordialmente em três sistemas ideológicos distintos de metafísica shaiva: Sphota, Spanda e Pratyabhijñá. Unidas, estas escolas formaram o que hoje conhecemos como Trika, nome pelo qual o Shaivismo da Caxemira é conhecido.” B. Bhattacharya em Shaivism and the Phallic World, vol. II, pp. 653. Munshiram Manoharlal, 1993.
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